Teologia como estudo sobre Deus
01/05/2012 23:08Esse tipo de definição pressupõe que a Teologia disponha de informações sobre Deus. Sua existência é pressuposta dogmaticamente, e seus atributos são dados a conhecer. Teologia é estudo sobre Deus porque é conhecimento de Deus. Não importa se a Teologia pretende saber tudo de Deus, e tudo sobre Deus inteiro, ou se considera que saiba apenas alguma coisa, muita coisa, pouca coisa, não importa, sobre Deus. O que quer que a Teologia fale sobre Deus, ela o fala em tom de saber, de conhecimento. A Teologia fala porque sabe do que fala, e o que fala sobre do que fala.
Também é pouco relevante considerar que essa forma de definir Teologia entenda logicamente seu discurso-conhecimento sobre Deus, ou o trate analogicamente. Lógica ou analogicamente, denotativa ou conotativamente, objetiva ou subjetivamente, o que a Teologia diz saber ela considerar saber.
Algumas conseqüências são incontornáveis. Primeira, o teólogo é um sujeito que conhece Deus. Conhecendo Deus, o teólogo sabe que ele existe, sabe quem ele é, sabe o que ele quer, sabe como ele quer as coisas que ele quer. O teólogo é, portanto, um sujeito que sabe. Claro, lógica ou analogicamente. Mas, viu-se, tanto faz.
Segunda, isso que o teólogo sabe sobre Deus e as coisas de Deus, sendo conhecimento, torna-se critério de verificação, aplicado a tudo quanto se diga de Deus. E nos seguintes termos: se o teólogo sabe quem Deus é, é Deus tudo aquilo que ele o considere como sendo Deus, e apenas isso, de tal modo que alguma coisa que qualquer pessoa diga de Deus, não coincidindo ou concordando, sob certos limites internamente razoáveis, com o conhecimento que o teólogo tem de Deus, não é verdadeiro conhecimento de Deus. Ou seja: o conhecimento do teólogo torna-se critério para o conhecimento de Deus.
Terceira, a Teologia torna-se, necessariamente, fechada. Não tem mais a mínima possibilidade de diálogo. Qualquer aproximação de terceiros dá-se por instrumento da catequese, do proselitismo, do convencimento racionalizador. Uma vez que o teólogo sabe, torna-se, imediatamente, professor, confessor, catequista.
É pertinente considerar que essa seja uma definição de Teologia que carrega a atmosfera epistemológica do período pré-romântico. Não seria sistematicamente atacado nos séculos XVIII, XVII e daí até suas origens. Trata-se de uma definição propriamente medieval, com o que se quer dizer, apenas, que ela passa ao largo, muito ao largo, o mais ao largo possível, das teses romântico-humanistas, kantianas e pós-kantianas. A noção de “céu de chumbo”, kantiana, é-lhe desconhecida, e, se conhecida, como no caso da teologia neo-ortodoxa do final do século XIX e século XX, é contornada através de um argumento válido apenas internamente ao círculo racionalizador, que é o que se pode dizer de um argumento que tem a coragem de afirmar que, sim, o “céu é de chumbo”, mas que Deus se revela ao homem. A Teologia neo-ortodoxa não o quer dizer, nem gosta que seja dito, mas o que ela faz, na prática, é tornar Teologia revelação.
Para uma tal definição, teses romântico-humanistas como as de Kant, Schopenhauer e Feuerbach são ou sombra de ateísmo, e coerentemente, já que Deus é o que a Teologia diz que ele é, ou o próprio. Sim, tudo é histórico e historicamente condicionado, mas o conhecimento que o teólogo tem de Deus, esse não, esse é supra-histórico, a-histórico, porque não tem nada de fundamentalmente histórico, posto ser revelação. Ora, considerar-se revelação um tema teológico é uma coisa. Raciocinar e agir a partir da identificação, inconsciente ou não, por ingenuidade-ignorância epistemológica ou má fé político-religiosa, entre revelação e Teologia, revelação e doutrina, revelação e dogma, revelação e verdade, isso constitui improcedência teológica.
Sim, o homem lida com o mundo real, por assim dizer, mediante interfaces representativas, como bem o viu Schopenhauer, assume a Teologia. Mas o que o teólogo sabe de Deus, não, isso é conhecimento mesmo, imediato, para cuja comprovação estão, aí, se não os dogmas inexoráveis, certamente a experiência pessoal do fiel.
Sim, que as religiões não passam de projeções da vaidade humana é a coisa mais clara do mundo, e Feuerbach não fez mais do que confessar uma verdade conhecida até do mundo mineral. Não é o caso, contudo, da Teologia, que homem algum pode projetar-se em Deus, tanto é que a Teologia é, antes, projeção do próprio Deus na forma de conhecimento humano.
Para esse tipo de Teologia, permita-se-me ousar dizê-lo, é imperiosa, para a saúde da civilização, a República e o Estado de Direito. Como evento didático, seja estabelecido a Revolução Francesa. Para o bem e para o mal, a mim quer-me parecer mais para o bem do que para o mal, a República, não-religiosa, o Estado, não-religioso, funcionam como moderador das verdades conflitantes das Teologias medievais e pré-medievais. Sim, porque trava-se, entre elas, uma batalha cósmica, mística, carismática, ciclópica. Fosse ainda permitido – e não o é justamente por conta da constituição político-social da República –, como muito genialmente o diz Edgar Morin, não apenas os homens se matariam, ainda hoje, em nome de Deus, mas cada Deus, igualmente verdadeiro aos olhos de seus exércitos, levaria à hecatombe santa multidões excitadas e embriagadas de sangue.
Considero legítimo o direito de um cidadão da República considerar que conhece Deus, que sabe dele, das coisas dele. Considero, também, contudo, que a República deve me dar o direito de não dar a mínima atenção ao que esse cidadão pretende dizer, sem que, por conta disso, possa fazer-me algum mal concreto. Que ele me possa endereçar sete vezes aos infernos de sua teologia, vá lá, é uma incoerência própria desse tipo de Teologia que o amor, fronteiriço ao ódio, confunda-se com ele. A República, contudo, tratará de manter os maus sentimentos desse teólogo reclusos à sua cabeça de teólogo e ao seu quarto fechado. Quanto a mim, defenderei o direito dele pensar o que pensar saber, e viver assim, ao mesmo tempo em que não abrirei mão de meu direito de considerar muito engraçada a sua condição, protegido pelas garantias constitucionais do Estado de Direito republicano.
Como Hans Küng já afirmou, essa Teologia não tem condições de estar na Universidade. Está. Em cursos de pós-graduação, Mestrado e Doutorado, ela até procura mostrar feições próprias das Humanidades, mas são só feições, máscaras mal colocadas, que não permitem a folia no salão, que caem depois de dois pulinhos mais felizes. O dogma nuclear, mais ou menos dilatado, lá está, misturado a discursos pretensamente antropológico-culturais, mas, no fundo, apenas medindo forças, fazendo contas e concessões, dispondo do que é propriamente periférico, mas só do que é propriamente periférico.
Ora, se já aí, no topo da cadeia alimentar, a Teologia, universitária, conhece Deus, ensina-o, e ainda pretende comunicá-lo aos ignaros, o que não se imaginar, esperar e ver nas classes da Graduação? Catequeses inflamadas, mitigadas, apenas, pela aparente atmosfera de livre-pensamento. Mas se sabe, e muito bem, que essa história de livre-alguma coisa, no
Protestantismo não é séria, como penso poder dizer do princípio do livre-exame das Escrituras. No catolicismo, então, não passa de sonhos de tantos Luteros quanto aquele.
Teologia como estudo de Deus é possível, mas somente para quem concorde em viver ou no mundo pré-medieval, ou como se estivesse nele, e que, além disso, queira que todos os ouvintes de boa-vontade se mudem pra lá. Se os séculos XIX e XX não tivessem acontecido, essa Teologia estaria feliz.
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