Risco da Teologia romântico-humanista

01/05/2012 23:23

Sendo essa a Teologia que abraço e defendo, importa-me a lucidez epistemológica.

Se a Teologia não é mais conhecimento de Deus, logo, legitimada por apologias de revelação e retóricas de iluminação privilegiadas, mas, antes, operações epistemológicas internas às Ciências Humanas, se a Teologia é, agora, uma operação noológica kantiana (do primeiro Kant), schopenhaueriana e feuerbachiana, o que é que essa Teologia faz, ou diz fazer, que, eventualmente, outras disciplinas das Ciências Humanas já não o fazem? O que é, afinal, essa Teologia?

Recupera-se, aqui, a questão da relação concorrente entre Teologia e Ciências da Religião. Deixando de lado a Teologia de primeiro tipo, que aqui não se considera mais, o que diferiria a Teologia das Ciências da Religião? Por exemplo, o que difere a Teologia da Fenomenologia da Religião? Quando eu disse, certa vez, que meu acesso aos textos bíblicos não se faz mais senão mediante a Fenomenologia da Religião, o que estava eu, de verdade dizendo? Que eu faço Teologia, utilizando-me da Fenomenologia da Religião? Ou que eu faço, na verdade, Fenomenologia da Religião, mas que ali, porque se usa a Bíblia, a Fenomenologia da Religião é chamada de Teologia? Ou o que se faz ali, de fato, é, apenas, Exegese?

Se a Teologia é o estudo do que os homens pensam sobre o sagrado, o objeto de estudo está claramente delimitado. Ora, mas a Psicologia da Religião não lida com o mesmo objeto? Não estão a Antropologia da Religião, a Sociologia da Religião, a Filosofia da Religião, todas, igualmente, interessadas nele? Ah, claro que cada uma dessas ciências da religião tem um interesse específico, a psique do ser religioso, a cultura, as relações inter-sociais, os fundamentos da religião. Mas cada uma dessas especializações humanistas tem, contudo, muito razoavelmente claro o seu estatuto. Quando se fala de Psicologia, sabe-se do que se está falando, e se ele concorre, algumas vezes, com a Antropologia, trata-se, somente, de interposição circunstancial de temas, mas não de foco. A Filosofia, mal ou bem, vá lá, sabe-se do que se trata, haja ou não boa-vontade. Da Sociologia, ainda que se diga consistir, as mais das vezes, em teorias de sociólogos, ainda assim está claro o que seja. Mas e a Teologia? O que é ela? Nem quando se rouba dela, e justamente por isso até, sua pretensão de privilégio ontológico, tornando-a uma mera investigação humana acerca de fenômenos humanos, pode-se precisar em que consista.

Na prática, ou a Teologia se comporta como ontologia, descarada ou dissimuladamente, ou confunde-se com Ciências da Religião. E, enquanto não se descartar definitivamente a pretensão ontológica da Teologia, e enquanto não se puder dizer, em termos romântico-humanísticos, qual sua especificidade, a Teologia está em dívida com os teólogos, ou eles, com ela.

Talvez a Teologia romântico-humanista não seja uma disciplina, mas um congresso, uma abóbada temática, no interior da qual se moveriam disciplinas circunstancialmente instrumentais, sem que a Teologia em si, se tornasse, não obstante, alguma outra coisa, de um outro tipo ou qualidade. No interior da Câmara de Teologia, dando-lhe sustentação epistemológico-metodológica, estariam as Ciências Humanas operativas: Exegese, Antropologia, Sociológica, Psicologia, Filosofia, Epistemologia, as Neurociências, a Pragmática, a Lingüística, a Literatura, as Artes, a Geografia, a História, a Arqueologia, a Biologia, a Ecologia, a Política etc. O foco temático, instrumentalizado pelas operações pertinentes dessa imensa massa de metodologias, consistiria no discurso humano sobre o sagrado. Teologia, então, consistiria num olhar focado, e seria levada à efetividade mediante a operação, sob esse olhar específico, das demais especificidades humanistas.

Nesse caso, em outros salões temáticos, essas mesmas disciplinas estarão trabalhando em função de outros projetos investigativos, como o tema do belo, por exemplo, ou da ética. Porque tais disciplinas não seriam, absolutamente, em nenhuma hipótese, servas da Teologia, Deus nos livre. Seriam apenas, nesse sentido, imprescindíveis, operações sine qua non para qualquer – absolutamente qualquer – investigação romântico-humanista, que é como aqui se faz referência ao conjunto das Ciências Humanas.

Além disso, em torno da Teologia, e acima dela, circunscrevendo-a enquanto teoria, uma metateoria igualmente romântico-humanista a vigiaria. Essa metateoria seria constituída pelas mesmas disciplinas que, internamente à Teologia, por ela são operadas. Nesse complexo do anel metateórico, contudo, seria a vez delas controlarem as operações da Câmara de Teologia. Não se pode fazer Teologia sem Epistemologia, mas tão-pouco se pode pensar Teologia sem Epistemologia, de modo que uma recobre a outra, num complexo teórico e metateórico, nos moldes que Edgar Morin defende em O Método 4 – as Idéias, quando reflete sobre o teorema de Gödel aplicado à insuficiência crítico-epistemológica das teorias.

 

Teologia não seria, nesse sentido, operação de crentes. Mas de profissionais. O que crentes fizessem, ainda que imprecisamente, se chamasse teologia, como quando se fala de estilos de vida como sendo filosofias de vida, efetivamente corresponderia à racionalização doutrinária, que, a seu tempo, e a depender do seu interesse, a Teologia, aquela câmara multi, inter e transdisciplinar, poderia, eventualmente, investigar, mais ou menos como a Filosofia poderia fazer, nesse caso, investigando a filosofia hippie.

Se, em sua caminhada crítico-investigativa, por acaso, um teólogo romântico-humanista fosse surpreendido com o discurso catequético de um teólogo ontológico, e este pusesse sob risco, sob seus próprios critérios teológicos, a fé do primeiro, seria ocasião para se ouvir o seguinte: “Se Deus é como você diz que é, não posso saber, e, conseqüentemente, se valem para mim as suas advertências teológicas, também não o posso saber. O que posso dizer, razoavelmente, que se pode descobrir, é de onde se tirou essa idéia, quando ela nasceu, quem é seu pai, quem são seus patronos ancestrais e patrocinadores contemporâneos, a quem, politicamente, ela interessa, quem, economicamente, ela sustenta, de quem, socialmente, ela se nutre. Chegando a esse ponto, somente de má vontade você não reconheceria a razoabilidade da descoberta. E então a questão se altera: o que você diz ser ontologia, pode ser mostrado a você tratar-se de cultura. Agora, o que eu digo a você tratar-se de cultura, você me impõe considerar ontologia. Quem exige mais de quem? E quem tem má vontade nesse jogo? Eventualmente, se Deus é como você diz, as coisas são o que são, porque ele teria querido. Sendo elas, portando, de tal consistência, que eu não posso ir além da constatação de que idéias são idéias, e doutrinas, também idéias, esse Deus, eventualmente real, não poderia exigir de mim saltar não no escuro, que saltar no escuro o romântico faz, mas saltar para dentro das doutrinas como se elas fossem o escuro, e para os dogmas, como se ele fosse o mistério. E o são, mas só sob a condição da cegueira espontânea do teólogo, desde que a fé virou sacrifício”. 

 

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