O Sagrado e o Divino

02/05/2012 01:06

Se, de um lado, o “sagrado” é visto como algo distinto das forças da natureza, ele fica situado em que âmbito? Podemos situá-lo nas instâncias superiores, divinas ou de outro mundo, e ligar-nos a esta exterioridade para salvar o nosso mundo decaído e frágil, ou, podemos satisfazer-nos com os valores racionais que orientam nosso mundo técnico, científico e moderno.
A resposta é complicada porque estamos imersos num mundo racional, mas que também agrega os valores da religião e do âmbito divino. Todavia, quando nos referimos à religião, seriam todas ou somente algumas delas? A globalização da racionalidade fez com que também a religião viesse a se tornar um objeto de exportação. Esta trans-nacionalização faz com que certas agremiações religiosas entram em muitos segmentos de diferentes sociedades nacionais. Tal fenômeno, evidentemente nos leva a constatar que o termo “religião” se presta para muitas interpretações muito distintas umas das outras.
Enquanto algumas formas religiosas apelam em favor de uma abertura para o “outro mundo”, o divino, muitas outras se sentem plenamente confortáveis na adequação às regras do mercado internacional. Por isso Luiz Roberto Benedetti salienta que vem ocorrendo uma reconfiguração da religião na sociedade. 6 O consumo da religião parece tornar-se mais importante do que transformação de situações humanas inadequadas. Mesmo que o iluminismo e todo o prolongado processo de secularização tenham preconizado o fim da religião, esta, ao contrário, se manifesta muito mais intensa e aguda, mas, agregada ao mundo secular e se apresenta como religião indiferente aos tradicionais grupos religiosos. Portanto, mais do que pertencer a uma determinada religião, a religião leva as pessoas a fazer escolhas subjetivas. Assim, em vez de dogmas, normas e orientações divinas, o fato religioso leva as pessoas a escolher livremente os variados produtos nas prateleiras dos grandes mercados.
Este deslocamento do papel da religião vai provocar uma alteração na relação entre divino e sagrado. O Sociólogo Allain Touraine sustenta que o divino foi deslocado para o interior dos indivíduos.7 Estes interiorizam certos valores e estes é que lhe indicam as luzes para o caminho da vida. Observa-se, portanto, que o divino, que por longo tempo histórico foi estabelecido como algo que está além do nosso mundo, precisa incidir sobre este mundo para transformá-lo. Esta ótica teria permitido a certas pessoas manipular o divino para justificar seu próprio poder sobre as pessoas. É praticamente o que Immanuel Kant já havia formulado ao levantar a suspeita de que, quando alguém fala para outras pessoas a respeito do que Deus delas espera, poderia, na verdade, estar sendo veiculado apenas o desejo desta pessoa pretender controlar as outras que a escutam. Ao invés de proclamar a vontade de Deus, estaria afirmando apenas o seu poder de controle dos ouvintes.
Para Touraine, Jesus de Nazaré, no que fez e falou, teria colocado um encerramento no processo de utilizar-se o divino para manipular politicamente as pessoas e justificar seu exercício de poder. De certa forma, ele teria ajudado a deslocar o divino do “mundo do além” para o mundo da interioridade humana.
Mesmo situando o divino nesta interioridade humana, esta ainda pode oferecer a tentação de julgar o mundo de forma negativa, a partir da luz exterior e condenar a vida pelo seu materialismo, pelo seu hedonismo e pelos seus interesses mercantilistas. O sistema capitalista, de certa forma, ajudou a tirar da religião a capacidade de manipular politicamente as pessoas a partir de um suposto poder divino. Desta forma o que seria o lado benéfico deste deslocamento do divino, da exterioridade do outro mundo para a interioridade humana, representa, todavia, um novo problema: se o divino emerge do interior de cada sujeito já não se carece de nenhuma instituição religiosa, como a Igreja Católica e tantas outras.
O espargir de muitas emoções religiosas, pode não constituir um avanço real para a superação da fragilidade humana: ainda que a entrada do divino para a intimidade humana possa parecer louvável, e, aparentemente reafirmar os fundamentos cristológicos, pode o próprio sentimento divino da interioridade, voltar a ser exercido como um poder tirano e que instrumentaliza as outras pessoas segundo as leis do mercado. Já veiculado como um produto a mais nas prateleiras do consumo, o divino, fica na mesma e velha função manipuladora das pessoas. Se apenas o mundo interior é a fonte para ditar o que é divino, sagrado e bom, pode ainda alguém, que está além do nosso mundo, nos dizer algo para não ficarmos na mera condição de lagartas que consomem as folhas que manipuladores nos tratam?

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