O SACRIFICIALISMO
02/05/2012 01:51
Sabemos que na história antiga ocorreram formas muito variadas de práticas sacrificiais. Os fundamentos bíblicos, ao tratarem do primeiro grande líder Abraão, revelam que nele aconteceu uma grande mudança no modo de praticar sacrifícios. Segundo o costume da sua região e da sua época, um casal, ao ter o primeiro filho, o sacrificava, na expectativa de que tal procedimento aplacaria as raivas de Deus e Ele, satisfeito, passaria a conceder-lhes, então, muitos outros filhos. Abraão rompeu a tradição ao substituir seu primeiro filho por um cordeiro. Escolheu um animal para servir de vítima no lugar de seu filho. De Abraão para frente, tornar-se-ia habitual o procedimento de vítimas sacrificadas (animais) para relacionar-se com Deus.
Ainda que o sacrifício de touros e de outros animais tenha chegado ao tempo recente de Jesus Cristo, isto ainda não significa que desapareceu o sacrificialismo. Em nossos dias, persistem muitas lógicas sacrificiais, produtoras de muitas vítimas, não apenas de animais, mas de pessoas humanas. São vítimas que morrem em decorrência de guerras, ditaduras, doutrinas de segurança nacional e tantas outras organizações sociais e governamentais que deterioram a qualidade da vida de grandes parcelas de seres humanos. Um sistema de vida, quando se revela injusto e sacrificial, significa morte de seres humanos, todos os dias. Da nossa história brasileira recente, de quinhentos e poucos anos, resultou uma triste constatação: as maiores matanças acabaram sendo declaradas como guerras justas e como meio de supervalorização de regras institucionais.
Das raízes do cristianismo, sabemos que Jesus de Nazaré, ao apresentar à condição humana uma proposta alternativa ao sacrificialismo, tanto de animais quanto de seres humanos, fez com que caísse vítima de sacrifício só porque apresentou a lei do amor como projeto de contrapartida dos sacrifícios... Jesus deixou um indicativo importante do ponto de vista antropológico: declarou a radical sacralidade do ser humano.
Franz Hinkelammert16 faz uma importante e necessária distinção entre “auto-sacrifício” e “dom de si”. Auto-sacrificio significa sacrificar-se ou aceitar ser sacrificado. Na história humana aparecem muitos personagens que aceitaram ser sacrificados. Um caso bem ilustrativo é o do mito grego de Ifigênia. Seu pai Agamenon queria invadir Tróia e deixou o exército em prontidão para encaminhar os ataques, mas como não tinha vento para a partida dos navios, mandou os videntes realizassem uma consulta junto aos deuses para ver o porquê deste fato. Foram dizer ao rei que alguns deuses estavam chateados com ele por uma série de razões e somente liberariam a soltura dos ventos se o rei sacrificasse sua filha que estava prestes a casar-se. Mesmo que a mãe relutasse contra o sacrifício da filha, esta aceitou ser sacrificada e, quando foi consumado o sacrifício, os ventos se tornaram favoráveis para o deslocamento dos navios de guerra.
Sócrates, da filosofia grega também serve de ilustração. Condenado á morte porque estaria corrompendo os jovens, ao orientá-los para que pensassem em outra coisa do que apenas tornar-se soldados para morrer estupidamente nas guerras. Em razão disto, Sócrates foi convidado a beber uma dose da seiva venenosa de uma planta chamada Cicuta. Ele tomou e morreu. Na Bíblia ocorre um caso parecido em Juízes, 11,36: a filha de Jefté aceita ser sacrificada... Assim, também na Idade Média desenvolveu-se uma interpretação da morte de Jesus Cristo. Como Deus queria que ele morresse pelos pecados humanos, ele aceitou pacificamente ser sacrificado. Na verdade, pode-se interpretar a morte de Jesus numa perspectiva muito diferente e mais significativa: foi como “dom de si” que o levou á morte, isto é, Ele acabou sendo crucificado por ter sido profundamente coerente com um projeto de vida, e que, na linguagem religiosa, chamamos Projeto do Reino. O que o tornou agradável a Deus não foi uma submissa de aceitação da morte, mas a coerência do que o levou a esta morte.
Hinkelammert ainda faz outra observação significativa que é a de distinguir anti-sacrifício de não sacrifício. Podemos envolver-nos em lutas anti-sacrificiais como o mundo moderno tanto apregoa, mas em nome desta defesa, continuar sacrificando milhões de seres humanos. Nossa inquietação maior deveria ser a da não sacrificialidade, ou seja, ir além dos sacrifícios a fim de que pessoas humanas deixem de ser sacrificadas. Podemos ver isto na história recente da América, onde povos foram dizimados porque praticavam sacrifícios deferentes dos habituais da cultura européia e tal anti-sacrificialismo não foi suficiente para levar os colonizadores a não matar estes povos. Algo parecido ocorre ainda hoje em relação às criticas que se fazem contra a inquisição da Igreja Católica medieval. Há uma reação contrária àqueles sacrifícios e, no entanto, mata-se em sacrifício muito mais e de forma muito mais cruel. Isto indica que a preocupação maior deveria mesmo ser em torno do não-sacrificialismo.
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