O MIMETISMO DA VIOLÊNCIA
02/05/2012 01:39
O desejo que leva as pessoas humanas a querer estabelecer ordem no meio do caos, também leva a uma forma sutil de disfarce da violência. Se, por exemplo, tomamos um caso conhecido da Igreja Católica na Idade Média, que foi o de queimar bruxas e pessoas heréticas na frente das catedrais, ocorria algo interessante. Ao se queimar uma vítima, cantava-se o hino “Te Deum”, um hino de louvor a Deus.
A questão importante para o nosso entendimento é o do porque se queimava alguma pessoa acusada: o motivo comum era o de que praticava sacrifícios não estabelecidos na ordem oficial. Não se reparava que o fato de matar aquela pessoa significava outro sacrifício. Por isso, ao se condenar alguém ao sacrifício, se cometia um novo sacrifício, mas sem sentimento de culpa por tal ato. Ao contrário, elevava-se um louvor a Deus, porque se considerava ter colocado ordem no meio do caos.
Curiosamente isto não foi apenas um problema da inquisição católica. Aconteceu em toda a história humana, aconteceu na colonização da América, e, se repete nas guerras e nas múltiplas formas de genocídio, tranqüilamente toleradas em nossos dias. Basta lembrar que os genocídios da invasão colonial americana eram justificados pelo argumento de que aqueles povos americanos cometiam sacrifícios humanos. Portanto, também fora da Igreja, e hoje, particularmente, nos governos civis e em todas as instâncias do poder, se repetem os mesmos fenômenos de queimação das “bruxas”, isto é, em nome da ordem, matam-se milhares de pessoas, sem nenhum constrangimento de que tais atos sejam de sacrifícios humanos até piores do que os da inquisição.
Quando analisamos notícias que envolvem mortes em tiroteios, tais como as das favelas do Rio de Janeiro ou de Rio Verde, repete-se algo parecido: os valorosos heróis da polícia ou da pátria eliminaram um “marginal” ou um “elemento ameaçador” à sociedade... Parece que toda a sociedade consente pacificamente que tal ato foi necessário, e tampouco o interpreta como um sacrifício humano. Desta forma, podemos entender que, em muitos outros comportamentos humanos, está escondido um desejo mimético de violência. Por que mimético?
Mimetismo é o termo usado para caracterizar a adaptação de certos animais ao meio-ambiente, a tal ponto que se confundem com ele. Por exemplo, muitos sapinhos, rãs e outros insetos e animais adquirem a mesma coloração das plantas nas quais vivem, a ponto de serem confundidos com aquelas plantas. Grande parte dos animais apresenta traços desta adequação ao meio-ambiente e isto lhes serve de auto-defesa ou de disfarce para captar outras presas. Entre os seres humanos, ocorre algo muito parecido nas relações. Sobretudo na violência, refletem-se estes disfarces.
Já vimos, acima, que até em torno do sagrado ocorrem violências. Assim, em muitas outras formas de relacionamento humano se reproduzem violências bem disfarçadas e, por vezes, até justificadas como sendo atos de amor ou procedimentos estritamente necessários para se manter a ordem diante das ameaças de confusão e de caos.
Podemos perceber que não é toda a realidade humana que se encontra envolvida neste mimetismo. Mesmo assim, a perspectiva do mimetismo da violência representa uma janela aberta que nos permite constatar muitos âmbitos da vida, envolvidos em atos violentos, mas, disfarçados como necessário procedimento de estabelecer ordem no meio do caos.
Isto ajuda a entender tanta violência entre os seres humanos e, especialmente, a partir das instituições sociais. Em nome de estatutos, ou das regras máximas de um Estado ou de qualquer outra organização, cometem-se verdadeiras barbaridades e que contrastam profundamente com os discursos de harmonia, de paz e de serenidade na convivência. Recuperando uma experiência da linguagem religiosa da Bíblia, significa o pecado original, ou, esta natural inclinação para fazer outras pessoas sofrer. Parece que já nascemos com esta predisposição. Sempre que interpretamos algo como caótico, confuso ou ameaçador, passamos a valer-nos de formas miméticas de violência, com vistas a estabelecer ordem.
Ao desejar a ordem disfarçamos, no desejo mimético, nossos mecanismos de agressão e de violência. Por exemplo, se os pais batem nos seus filhos, não vão dizer-lhes que é por raiva, mas porque os amam e que querem tirá-los do caos do erro, do risco e do perigo. Portanto, ao lado dos bons argumentos para muitos atos humanitários e de ação em favor do bem comum, escondem-se disfarces de violência.
Em certos grupos sociais tal fenômeno se torna bem explícito quando apelam a instâncias superiores e se interpretam certas posturas agressivas e violentas, como sendo interpelações do Espírito Santo, mas que podem estar simplesmente escondendo desejos miméticos de controle para uma presumida ordem, até em torno dos desejos mais sagrados.
O livro do profeta Jeremias, do Antigo Testamento da Bíblia, ilustra bem este traço. Dirige-se a Deus para falar-lhe do sofrimento ao qual está submetido, mas expressa profunda confiança de que Deus se encarregue de proceder à devida e merecedora vingança.
Poderíamos perguntar-nos sobre o porquê de tanto desejo mimético em nossas relações humanas. Segundo René Girard, o motivo principal está em focarmos um mesmo objeto. Por exemplo, quando duas pessoas querem um mesmo objeto, surge a rivalidade e, toda a relação humana que envolve reciprocidade implica em situações semelhantes, isto é, aceitar e não aceitar, sondar e não sondar o que uma pessoa está fazendo e, estas situações geram discordâncias.
Da mesma forma, as relações entre raças, culturas e povos, produzem ambições distintas em torno de desejos despertados e, ao se pretender a consecução destes desejos, tende-se a agir sobre outros de forma violenta, mas, de forma disfarçada em fundamentos de regras estabelecidas ou, em direitos proclamados. O caso se assemelha a uma disputa de duas meninas
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pequenas pela posse da mesma boneca. Se uma é considerada a dona da boneca, a outra não quer aceitar este direito. Na disputa, o objeto acaba facilmente destruído. Assim, também numa oposição de idéias, de argumentos e de defesas ideológicas, encontra-se escondido, de forma geral, um desejo de posse, de espaços, de cargos ou de objetos. No afã de apropriação, cria-se oposição ao outro, mas, alega-se causa nobre e humanitária.
Quando a disputa em torno de um objeto leva à morte, tende-se à criação de novas regras a fim de que outras pessoas não repitam o que a vítima fez. Segundo René Girard, todas as instituições humanas decorrem de três pilares: a) o interdito – estabelecer regras para evitar que outras pessoas façam o que a vítima fez; b) o rito – fazer o que a vítima fez para salvar-nos; c) o mito – que procura recordar continuamente estes fatos salvíficos.14
O que pode significar a teoria mimética da violência humana? Em primeiro lugar, nos ajuda a desmistificar os mecanismos de violência que se encontram estabelecidos em muitas instâncias da organização humana, sejam as de Igreja, de serviços chamados de pastorais, de governos, de relações familiares e cotidianas. Portanto, não se pode pensar que apenas famílias mal estruturadas praticam violências. Elas não constituem a única fonte desencadeadora dos desejos que levam a disputa, mas, manifestam como tantos outros níveis da organização humana, formas violentas nas relações.
Por outro lado, o conhecimento desta realidade humana da violência disfarçada, nos ajuda cultivar um pouco mais a capacidade lúdica e de humor, no sentido da sabedoria da concepção bíblica, isto é, entender como em nossas relações políticas, econômicas e sociais, se reproduzem violências, mas, que também podem apontar uma perspectiva de salvação. Em outras palavras, eu posso ser melhor do que a banalidade de muitos mimetismos violentos da lida normal com outras pessoas. Não preciso entrar no mesmo nível de violência.
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