Estudo sobre o pensamento humano sobre Deus
01/05/2012 23:17Uma definição como essa é claramente romântico-humanista. Ela reconhece as teses de Kant, de Schopenhauer e de Feuerbach. Reconhece e enamora-se delas. Não é possível reconhecê-las e apenas tolerá-las. Ou elas são reconhecidas, e apaixonadamente recebidas, ou são reconhecidas, e contornadas. Não há apatias aqui, mas somente ou ódio, ou paixão. Pois essa Teologia romântico-humanista é apaixonadamente romântico-humanista.
Ela não diz saber qualquer coisa sobre Deus, porque ouviu dizer, e creu, que os teólogos são homens comuns, que sabem o que os outros homens comuns sabem e podem saber. E o que romântico-humanisticamente todos os homens podem saber é o que é propriamente histórico e humano. Logo, o que os homens dizem saber de Deus, o teólogo – desse tipo – trata como doxa, opinião, cultura. Respeitosamente. Mas doxa, opinião, cultura.
Um teólogo – desse tipo – não dirá que não se sabe nada sobre Deus. Sua coerência epistemológica interna permite apenas a coerência de dizer que, se há Deus, não se pode saber que o que se pensa ser sabido dele seja real sabedoria dele, e que, além disso, saiba-se o que se souber, isto é, se pense e diga saber, seja o que for, chegou-se a isso pelas vias da representação mediadora, como o disse Schopenhauer. Logo, não, não se pode dizer que não se sabe nada de Deus, mas apenas que não se pode saber que o que se pensa saber de Deus é, de fato, sabedoria, também sendo epistemologicamente coerente, ao lado disso, reconhecer que, seja o conhecimento que for, é, sempre, construído histórico-culturalmente, por meio de interfaces hermenêuticas bio-psicológicas.
Logo, o teólogo desse tipo aproxima-se do fiel que pensa saber de Deus e até o ouve de bom grado, mas não assume nem que seja nem que não seja, porque ele, o teólogo, não tem como saber. Assume, apenas, como que é, na superfície: discurso humano sobre Deus. E não importa se esse fiel seja um camponês do Pantanal, um teólogo de Harvard ou um bispo católico ou protestante. O fiel pode dizer o que quiser, e crer no que quiser, e sentir o que quiser, e respaldar-se nos argumentos que quiser – em todas e quaisquer situações, o teólogo – desse tipo – ouvirá todos os discursos como o que são romântico-humanisticamente falando: representações humanas (Schopenhauer), projeções humanas (Feuerbach), cultura (Kant).
Conseqüências? Muitas. Primeira, o teólogo não pode dizer que saiba alguma coisa de Deus. Se pensa saber, não é um teólogo romântico-humanista. Ah, aquelas tentativas no final do século XIX de, atravessando o vale romântico do silêncio e da angústia, sair com a fé do outro lado. Nostalgia medieval. O vale romântico-humanista do século XIX é vale de solidão, é ermo angustiante, do qual não se pode sair pelas mesmas saídas medievais. Karl Barth nunca entrou nele. Olhou-o desde a entrada, pôs a mão côncava sobre as sobrancelhas, firmou as vistas, temeu o que viu, ou pensou ter visto, e contornou-o. A simples sensação do seu calor escaldante fez com que, rapidamente, corresse dali, e aquela Teologia medieval foi salva. Entrar no vale, contudo, e tomá-lo como a casa do homem e da mulher românticos, é uma coragem tremenda, um risco não pouco significativo, cujo epitáfio são as primeiras palavras de Assim Falou Zaratustra. Não há mais metas, mas só pontes, na condição de serem, sempre, pontes. Não se pode, aí, voltar, nem seguir em frente. Mas, ai de nós, não se pode, aí, nem tão-pouco, parar de andar.
Não, o teólogo não tem a mínima idéia de que, se o que ele sabe, é alguma coisa relacionada a Deus. Ele só sabe que o que pensa sobre Deus é pura noologia, pura idéia, pura imaginação e fantasia, as virtudes propriamente humanas. Ir além disso, ele não pode. Daí que a segunda consequência é seu interesse sincero pelas teologias de terceiros, porque são, todas, igualmente humanas. Todas as teologias são equivalentes. Não é por outra razão que o MEC tenha autorizado Faculdades de Teologia de diferentes tradições: cristãs, tanto católicas quanto evangélico-protestantes, e, também, kardecistas e umbandistas. E virão mais. Enquanto nos templos, teólogos do primeiro tipo chamam de demônios os deuses dos outros, nas Faculdades de Teologia, protegidas pelo Estado de Direito, esses mesmos demônios são cridos e ensinados como deuses. É divertidíssimo o espetáculo.
Um teólogo do segundo tipo, contudo, seja ele cristão, kardecista ou umbandista, para falar em termos de MEC, ou de qualquer outra tradição, saberá, primeiro, que sua teologia é pura construção romântica, enquanto ele mesmo tratará como construções também românticas as demais teologias do planeta. Caso ele seja do primeiro tipo, contudo, e ainda que esteja vinculado a IES credenciadas pelo Sistema Federal de Ensino, esse teólogo terá, no mínimo, enormes dificuldades de sentar à mesa com um colega umbandista, e, olho no olho, reconhecer que ali vão dois românticos, namorando opiniões culturais sobre um possível Sagrado além-noológico. O próprio conceito de fé desse teólogo exercerá tão profunda pressão sobre sua epistemologia, que a simples consideração civil do colega teólogo umbandista já aparecerá como pré-apostasia, pré-heresia, pré-concessão, e, finalmente, como provação da verdade. Nesse contexto, o segundo teólogo, o de tipo romântico, aprenderá, sem sursis, a lidar com seu chão romântico.
Uma terceira conseqüência, coerente com a episteme romântica, que a tudo transforma em interface hermenêutica e processamento histórico-cultural, é que a Teologia tornar-se-á investigativa. É por isso que Hans Küng afirmou que a única Teologia que tem direito a estar na Universidade é a histórico-crítica. Nesse sentido, concordo, uma vez que a Teologia, se universitária, se coerentemente universitária, se não é uma catequese de luxo, disfarçada em saber universal, só pode ser conhecimento universalmente falseável. Logo, deve reduzir-se às expressões historicamente verificáveis. Um teólogo do segundo tipo, por exemplo, jamais poderia, enquanto teólogo do segundo tipo, afirmar alguma coisa sobre a divindade de Jesus. Se Jesus era ou não era Deus, não se trata de uma informação verificável, investigável. O que o teólogo pode, e deve fazer, é verificar se os textos, por exemplo, do Novo Testamento afirmam alguma coisa sobre o tema. Para tanto, não se trata, agora, de fazer alguma coisa chamada Teologia, porque, se a questão é a interpretação de texto, que sabe disso a Teologia, senão aquilo que a ensinarem fazer a Exegese, a Crítica Literária, a História? Além disso, se o teólogo vier a se convencer, enquanto teólogo do segundo tipo, que, sim, o Novo Testamento, não no todo, pelo contrário, mas aqui e ali, considera a divindade de Jesus, essa conclusão jamais poderá ser tratada, por ele, teólogo do seguindo tipo, como conhecimento que não conhecimento histórico-social, o que significa dizer que ele terá a hipótese, própria das Ciências Humanas, de que um sujeito x, há dois mil anos, dizia crer e ensinava que Jesus era divino, e só. O salto que eventualmente esse teólogo faça entre essa hipótese e a adesão fideísta voluntarista a ela transforma-o, automaticamente, em teólogo do primeiro tipo. Um teólogo do segundo tipo não pode mais crer, senão sabendo que crê que crê. As investigações teológicas são o que são: investigações. E o teólogo é investigador, não juiz. Se tornar-se juiz, tornou-se teólogo do primeiro tipo, porque todos os teólogos do primeiro tipo fazem-se, automaticamente, juízes. O de segundo tipo, não. Se o fizer, muda de tipo.
———
Voltar