CONDENAÇÃO E SALVAÇÃO
02/05/2012 01:23
Outra contraposição humana é a de separar duas forças de vida: a condenável que é o mal; e a boa, a que salva.
O mal é um tema extremamente aberto e difícil de ser conceituado porque pode ser situado no corpo do ser humano, na sociedade, no mundo e até fora do nosso mundo sensível, ou seja, em Deus e outras instâncias divinas.
Sabemos que o mal não existe em si, em estado puro, como a essência de certos produtos. Mesmo assim, percebemos que está profundamente presente na realidade humana. Em certos momentos, parece ser bem mais forte do que nossa capacidade de lidar com ele. Segundo Herman Häring, “o mal como tal não existe: a palavra „mal‟ é atropelada pela multiplicidade e de suas formas reais, por isso, o „mal‟ é sempre mais do que nós somos capazes de imaginar e de compreender. É esta uma razão importante, embora não definitiva, do fascínio que ele exerce”.10
De forma geral, podemos identificar o mal como uma misteriosa inclinação que nos leva a fazer o avesso das coisas. Por que haveria este fascínio? Mesmo assimilado com fatos e situações muito variadas, o mal se encontra presente na vida humana. Facilmente lemos e interpretamos os fatos numa polarização: ou são bons ou são maus. Assim, violências, desvios e outros procedimentos injustos podem ser interpretados como maus pelas vítimas, mas muito bons pelos infratores.
A dificuldade para definir o mal está em que ele nunca é visto pela mesma coisa. Há uma recriação e constante formulação de novos rostos ou exteriorizações do mal. Em relação a qualquer coisa nova que se inventa ou se descobre, logo aparece uma postura antagônica, interpretada como mal, porque se usa o invento para finalidades maldosas.
O quadro das religiões é outro exemplo bem ilustrativo: querem apenas fazer o bem e salvar as pessoas. No entanto, umas em relação a outras, representam incontáveis situações de violência, desrespeito, difamações, exorcismos e, de vez em quando, implicam em terrorismo, guerras e mortes.
O mal não só vem sendo personificado com muitos rostos, mas também é detectado por trás de muitas máscaras do relacionamento das pessoas. Como Herman Häring escreveu, “o insondável e o banal, o sentimento de extremo poder e o absurdo andam juntos. Manifestamente, fascínio e horror andam juntos”.11
Por isto o mal não é detectado apenas em alguns seres humanos. Ele prejudica fortes e fracos, ricos e pobres, opressores e oprimidos, torturadores e castigados... Os culpados tendem a falar do mal que seus torturados lhes causaram. Em decorrência, nem todo culpado se auto-interpreta como culpado. Nota-se, pois, que o mal pode ser ocultado, disfarçado e até mesmo abstraído de um fato para outro.
Quer real ou quer imaginário, o mal induz à construção de mundos físicos, psíquicos, históricos e sociais com a pretensão de delimitar seu campo de ação, e proporcionar bem-estar, conforto e segurança às pessoas que se enquadram no alvo de interesses. Ao se fazer tal procedimento, já aparece o mal intencionado, cruel e procurado para outras pessoas ou grupos sociais. Portanto, quem se move numa ação para combater o mal, pode ver-se personificado como mal para outras pessoas que pensam de forma diferente.
O mal se apresenta de forma misteriosa porque nunca se revela escancaradamente, mas se esconde em conceitos de ordem, de justiça, de regras e de leis. Quanta gente sente um prazer sádico ao poder torturar e fazer outras pessoas sofrer! Assim, até regimes sociais, tanto
11 Idem, p. 34-35.
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totalitários quanto os chamados democráticos, apresentam como alvo, a destruição de outros regimes. Algo parecido também se manifesta nas diferentes religiões que se proclamam no direito e no dever de salvar. Constata-se, pois, que até o nobre ato de salvar não está totalmente isento dos riscos de ser interpretado como manifestação do mal. Pode ser por ferir o respeito ao diferente, por demonização indevida, por mecanismos dominadores e totalitários e por auto-imagem de superioridade em relação a outras religiões similares.
Herman Häring salienta que, teologicamente, ocorrem três níveis de fascínio pelo mal:
a) Fascínio pelo irracional – apesar de toda uma sistemática insistência de discursos políticos, econômicos, religiosos e sociais em torno da necessária racionalidade que ainda falta na convivência humana, repara-se que a tendência humana ao irracional parece ser bem superior em muitos momentos históricos. Mesmo diante dos quadros do bom, certo, correto, justo e digno, ocorrem constantes deslizes e fascínios pelo avesso destas valorizações. Ao lado do que é bom e que salva, há um fascínio pelo mal. Pode ser nos pensamentos, nas relações quanto nas contravenções.
No quadro cristão ainda persiste uma profunda influência agostiniana, segundo a qual o mal decorre de três fatores: da liberdade, da ausência do bem e da herança do pecado. Teoricamente esta discussão é complexa: a salvação que vem de Deus, teria a força para erradicar o mal. Estaria Deus cumprindo esta promessa? E se o Deus da salvação não está resolvendo este problema, estaria Ele sendo maldoso ou fraco? Ou estaria este Deus querendo tantos abismos e mazelas na condição humana?
b) O fascínio pela luta - As esperanças, ou messiânicas de salvação, ou meramente humanas para conquistar bens, domínios e posses, agregam uma perversa perspectiva para dominar outras pessoas e elevar nossos sentimentos de riqueza, seja simbólica, de honra, de poder, ou de horizontes desvendados no caminho da santidade.
Como a busca de êxito, seja no campo humano que for, tende a provocar amarguras, decepções, mágoas e desencantos, está ali um potencial para a ação vingativa, porque a frustração do alcance de metas estabelecidas gera um novo potencial de violência e de luta para reaver o que foi perdido. Procede-se, desta forma, um combate do mal para combater outro mal. Uma vida, mal vivida, é potencialidade para ação que gera outro mal. Muitas vezes esta vida é assim induzida por educação. Por exemplo, como entender o fascínio dos mercenários de guerra e dos soldados que deliram e se sentem extasiados quando conseguem matar, torturar e levar outros ao sofrimento?
c) Fascínio pelo transcendente – Aquilo que é interpretado como mal, também tende a provocar julgamentos subjetivos, e muitas vezes, projeções enganosas. A tendência humana, ao julgar algo, é a de lhe atribuir valor moral, e, por isso, logo passa a deduzir sobre o que não deveria estar acontecendo. Ademais, o mal não se restringe apenas ao que queremos controlar e manter sob rédeas, mas, o que foge do controle e das rédeas. Por exemplo, se como cristãos desejamos uma sociedade justa, igualitária e boa e que tenha um futuro promissor, segundo a rica herança do messianismo bíblico, ao desejarmos viver esta perspectiva, vamos encontrar dificuldades de muitas naturezas que não conseguimos controlar e que estão além de nossas forças e da nossa boa vontade.
Esta incapacidade de estabelecer controle sobre o mal pode provocar uma crise: afinal, pode mesmo realizar-se esta esperança messiânica? Além disso, a vontade de fazer acontecer o bem sobre o mal, pode facilmente degenerar em fascínio para destruir e demolir coisas que, para outros, são abençoadas e boas. Por ali já se pode deduzir que o mal detestado facilmente implica em outro mal com vistas a combatê-lo. Este risco também está muito visível no campo religioso: para combater um mal fora de um quadro religioso, usa-se de uma maldade da mesma natureza. Assim, muitas expectativas em torno do reino de Deus não passam de “reino do capeta” para as vítimas.
O problema é que, nos seres humanos, afloram efeitos inconscientes de desejos frustrados e que levam a deslocar agressões para outros focos e superstições ou ainda, a expectativas de que Deus resolva tudo em nosso lugar, até mesmo os problemas que nós mesmos nos criamos. Vale o que Immanuel Kant referiu a Jó, no sentido de que convém gritar a dor, mas isto ainda não significa que, com tal procedimento, tudo já esteja resolvido. Sobretudo no pensamento da cristandade católica pensou-se a ação de Deus ao lado do terrível Satã que ofuscava quaisquer sonhos. O mal não fica dissolvido com meros sonhos e com cultivo de sentimentos de que Deus possa derrotar as forças de Satã. O mal, tão presente no mundo pode induzir-nos a pensar que Deus está perdendo a batalha. Entretanto, ainda que o mal seja incontestável, especialmente quando é sofrimento alheio, e, quando se age em favor das pessoas que se encontram neste sofrimento, aí o fascínio do mal realmente perde capacidade de expandir-se.12
Este jogo, que envolve maldição e salvação, é, na verdade a contraposição de bem e mal. Tal quadro nos coloca, a partir das raízes bíblicas, duas perspectivas distintas de lidar com os acontecimentos e com os projetos para o futuro da humanidade:
a) A perspectiva do Gênesis – que pressupõe a revelação divina e a ação de Deus na história concreta para eliminar o mal que ali se estabeleceu. O mundo teria sido criado bom (paraíso), mas o mal produziu o pecado, a morte e a ruína da criação. Assim, o mal foi personificado na serpente (teria sido a cultura Cananéia que ameaçava a fragilidade das 12 tribos de Israel?). Isto coloca um limite: ou as pessoas obedecem a Deus, ou seguem a serpente – o mal.
b) A perspectiva do Profetismo - que apresenta uma mensagem de salvação para o mundo presente. A profecia apocalíptica faz uma advertência a respeito do que vai acontecer no fim. Num quadro de perseguição e de muitas hostilidades, a perspectiva apocalíptica apresenta um horizonte de esperança e de estímulo para que se agüente o sofrimento até o fim, pois, então, o mal será eliminado em todas as suas formas. Acredita-se, pois, na erradicação do dragão, ou do mal.
Bem, se o paralelismo entre bem e mal já se torna difícil de ser equacionado, como interpretar, então, os que vivem a religião sem Deus?
O ateísmo foi provocado num momento histórico-cultural cristão. Então, o suposto mal passou a ser delineado precisamente na imagem autoritária de Deus, que se prestava muito mais para legitimar o poder do que para estabelecer o bem e a salvação entre as pessoas. Isto serve, particularmente para questionar nossos quadros de fé cristã: pode a experiência que fazemos do divino levar-nos a comportamentos autoritários e repressivos? Parece que não deveria levar-nos a tais práticas de abusos do poder político e que, em nome de Deus, implicaram em profundas injustiças humanas dentro e fora da Igreja.
Ao contrário de que muitos desejam, a história cristã passou ao mundo, de forma muito intensa e escancarada, a imagem de um Deus injusto e opressor, ao invés de um Deus que aponta caminhos de experiências mais místicas, de um Ser superior capaz de vencer as vivas, vagas e indeterminadas manifestações do mal com tudo quanto a ele associamos.
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