A VIOLÊNCIA DO SAGRADO

02/05/2012 01:42

Facilmente constatamos o efeito da dessacralização do mundo e do modo como esta dessacralização agride o mundo, tido, por muito tempo, como lugar sagrado. Poderia, em contrapartida, o sagrado também manifestar formas de violência?
Um importante estudioso francês, René Girard, sustenta que o sagrado também exerce violência. Para ele, os sacrifícios constituem expressão privilegiada de violência, ainda que, aparentemente, não exista violência nestes atos. Defende ele que o sacrifício resulta da substituição de uma violência. Por exemplo, há pessoas que imolam animais para substituir a violência praticada contra certas pessoas achegadas. Em outras palavras, acaba-se dando a entender que a substituição da morte de pessoas pela morte de animais, significa que a vida destes importa menos. Ademais, não é apenas uma questão envolvendo o corpo humano, mas há violências e mecanismos de destruição em correntes afetivas. Ocorrem certos deslocamentos parecidos com o que acontece no meio das galinhas: quando uma se coloca de vítima, todas as outras deslocam sua agressividade, agredindo esta vítima.
Segundo Girard, não se suprime e nem se elimina a violência, mas apenas se consegue acalmá-la quando é desviada ou enganada... Por isso, os rituais de um sacrifício não constituem uma relação entre os sacrificadores e a divindade, mas um ato que disfarça uma violência. O sacrificador realmente não conhece o que está por trás do sacrifício. Há um pressuposto de que Deus esteja exigindo vítimas e que Ele somente se acalma quando se lhe oferecem vítimas. Era a questão do deus fenício Molloch, que exigia sacrifícios de seres humanos e que levava o exército a caçar escravos para matar, a cada dia, algum deles.
De acordo com Girard, os rituais de sacrifício não passariam de rituais coletivos de transferência (raivas, rivalidades, rancores, etc.). Seriam projeções sobre as vítimas. Nesta substituição, a vítima passaria a oferecer proteção aos membros que realizaram o sacrifício e levaria a um deslocamento da sua violência. Desta forma, um grupo agredido, ameniza sua agressividade, suas disputas e hostilidades contra outros que o agrediram. As vítimas podem ser humanas. É o que podemos perceber na relação da polícia com o bandido. Ao se afirmar que é bandido ou marginal, insinua-se que devia mesmo ser morto. Do mesmo modo eliminam-se prisioneiros, reis, etc.
Sem o deslocamento, a violência seguiria um curso espontâneo, gerando vinganças e represálias intermináveis. Bem sabemos o quanto um ato violento tende a produzir outros atos violentos. Portanto, um ato violento pode levar a um ato de vingança, ou ao deslocamento do sacrificialismo.
Como enxergamos a lida com as vinganças? É possível constatar que alguns grupos, bem como certas regiões, têm mais propensão para cometer vinganças privadas. Outros grupos ou outras regiões aceitam mais e melhor as regras judiciárias, e se conformam, aos poucos, com os julgamentos das últimas instâncias. Na verdade, o que ocorre no sistema judiciário? Por exemplo, caso eu roube o dinheiro de uma pessoa, o que faz o sistema judiciário? Aplicará uma represália, considerando-se soberano, para impedir que eu insista com apelações sobre a última palavra dita.
E se ocorrer que o sistema público não descubra meu furto, é possível que a vítima vá tentar uma vingança privada contra mim. Assim, acontece, de forma geral, em nossas socializações: a vingança vai criando, continuamente, novas vítimas. E quando a vingança não é vingada ou não se aplicam represálias, então se procura um amparo mais amplo para que se cobre justiça: é a famosa expressão “queremos justiça”, que tantas vezes ouvimos.
Existiria ainda, segundo Girard, outro jeito de ocultar a vingança: a de apelar para a religião. Os povos antigos faziam rituais mágicos e sacrifícios. Atualmente, é mais comum que as pessoas façam uma racionalização. O sacrifício, portanto, exerce um papel preventivo contra a vingança. Ele impede que se alastrem indefinidamente os mecanismos de vingança. É por isto que se apela com tanta intensidade contra os efeitos da vingança, pois tendem a ser piores do que os da agressão. É como um dependente de álcool, que é induzido a de afirmar que não vai beber o primeiro gole, ou o obeso que deve dizer para si mesmo que, naquele dia, vai conter sua voracidade para comer muito. Assim, também, o sacrifício tenta evitar a vingança.
A vítima usada no sacrifício, geralmente não é a culpada, mas o imolado sofre para livrar a vingança do outro. Se a vítima voltasse a afetar o agressor, passaria a gerar nova violência, o que também seria visto como impureza ritual. Disto decorre a evidente conseqüência: que não se busque a vingança. Certamente não precisamos ir longe para perceber o quanto um ato de vingança é contagiante, uma vez que a violência gera violência, toda vez que ocorre mecanismo de vingança. Em muitas situações este extremo chega a tal ponto que parece impossível apaziguar os ânimos sem derramamento de sangue. E quantas vezes já foram provocadas verdadeiras catástrofes, simplesmente porque se pretendia impedir o avanço da violência.
Girard ainda destaca outro elemento da violência: quando uma comunidade se vê envolvida por atos violentos ou calamidades que não consegue controlar, busca impetuosamente um “bode expiatório”. Até em derrota de jogo, seja de futebol ou de baralho, acontece algo parecido. Descarrega-se no outro a culpa do fracasso. Outro caso muito em voga: quando acontece um acidente aéreo... Desloca-se todo o problema para achar a caixa-preta, como se ela, ao revelar o porquê do acidente, pudesse resolver alguma coisa capaz de anular o que aconteceu. No sentido geral, parece que a destruição da vítima expiatória vai livrar as pessoas daquele mal. Para Girard, isto é apenas a descarga da violência interior. É como um analgésico que acalma rapidamente os ímpetos de uma dor ou machucadura. A história humana está repleta de ilustrações sobre enormes amplitudes de violência que atingiram certas comunidades. As vésperas de nossas eleições políticas constituem bela ilustração desta alteração de ânimos. Ocorre que os atos de vingança são, muitas vezes, agravados por fanatismos que cegam os agressores a tal ponto que se tornam incapazes de enxergar sua própria violência e percebem apenas violência de seus adversários ou opositores.
Ocorrem casos em que a violência somente cessa quando se realiza uma vingança massiva e coletiva e que leva o outro grupo a um conformismo ou a uma adaptação. A violência se encontra presente até mesmo na cultura, uma vez que ela cria, gesta e se move em torno de violências. A Grécia antiga mantinha os chamados Fármacos (pharmakos), prisioneiros desgraçados que eram sacrificados em momentos de perigo. Porém, antes de serem mortos, eram levados pelas ruas para que pudessem absorver todo tipo de males que ali se manifestavam. Sua morte, depois, produzia um efeito analgésico ou catártico, e a cidade se enchia da convicção de que, em troca desta morte, receberia um misterioso benefício. É o que ainda hoje podemos escutar quando muita gente fala da morte de certas pessoas não desejadas.
Para Girard, este retorno misterioso do que se espera a partir do sacrifício de alguém, equivale ao sagrado, que, por sua vez, apresenta exigências detalhadas e assustadoras em torno do que vai acontecer. Sob este aspecto, pode-se perceber que a violência vem do fora (do sagrado) e incide sobre os homens. Vemos também que os azares, as doenças e as mortes costumam ser atribuídas a Deus ou ao âmbito do sagrado. Tudo isto faz com que a alma do sagrado seja a violência e, por isso mesmo, a necessidade de se manter certa distância do sagrado. Não se deve tocá-lo, e se deve ter muito cuidado na execução dos rituais.
Qual seria, enfim, o serviço prestado pelo sagrado? Simplesmente o de atrapalhar a violência humana a partir de uma ameaça transcendente. Esta ameaça somente pode ser acalmada com certos critérios e quando, numa predisposição de modéstia, se aceitam estes critérios do sagrado.
A função do sagrado ainda nos remete a outra questão: como seria uma comunidade humana sem as sanções e ameaças do sagrado? A conclusão deixa uma conotação de que o pensamento religioso representa certo medo diante do que atos de violência ou de vingança divina possam exercer sobre o fiel, o piedoso, o temente e bondoso, bem como, sobre um núcleo comunitário ou sobre a cidade. Em outras palavras, significa que eu não brigo aqui, a fim de evitar o sofrimento de violências divinas e sobre-humanas. Neste caso, a raiz da violência se situa no além e só deixa de crescer em nosso meio, graças aos ritos cultuais.

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