A VIOLÊNCIA DO EROTISMO

02/05/2012 01:48

Vimos acima que, em nome do sagrado, cometem-se atos violentos. Teria o erotismo o mesmo pano de fundo? Há quem sustenta que também os atos amorosos geram violências. Se, por exemplo, reparamos como um ato de relação sexual é apreciado pela sociedade, constatamos que, na maioria dos casos, estão impregnados de violência. Classificam-se os pressupostos infratores como sendo estupradores, pedófilos, agressivos, despudorados, monstros, etc. Muda apenas a interpretação dos fatos. Quando um ato de erotismo envolve entrega, o referido fato é interpretado como sendo de amor. No entanto, se não ocorre entrega, então, é assimilado como sendo estupro ou violência sexual.
O ato erótico costuma violar os seres que nele se envolvem. Seja por motivações envolvendo o sagrado, ou quaisquer outros, como o da afeição dos amantes, um ser atinge o outro no mais íntimo do seu ser; e, para tanto, precisa romper o fechamento que o parceiro ou a parceira lhe estabelecem. Talvez, seja por isto que se manifesta um ar de vergonha e de cumplicidade em torno do ato de despir-se. Por que, no geral, as pessoas sentem tanta vergonha para despir-se diante de outras pessoas estranhas? O erotismo envolve obscenidade e normalmente a paixão erótica torna-se ato de violência, porque implica em sofrimentos, tanto físicos, quanto morais.
Poderíamos, então, indagar: o que um ato erótico tem a ver com sacrifício religioso? G. Bataille fez, em 1957, uma análise desta questão e sustentou que o sacrifício não implica somente em nudez, mas em morte real e corporal da vítima.15 Um sacrifício, como um ato amoroso, implica em destruição, tanto no sentido pessoal, quanto corporal. O sacrifício, bem como o ato amoroso, quer a comunhão, o contato absoluto, o transcendente.
Podemos, no entanto, ponderar a partir da teoria de Tomas Kuhn, que sustenta o princípio da contradição. Transpondo-o para o ato amoroso ou de comunhão com o divino, tudo o que atrai, também repele. A simples conseqüência de um ato sexual, movido por intensa atração, caso não houvesse repulsa, acabaria em morte dos envolvidos. Basta reparar que quantia relativamente alta de uniões amorosas acaba em ódios profundos e até em mortes.
Existe nesta relação um duplo aspecto: de um lado, o efeito da proibição, seja institucional ou moral; e de outro lado, o ato sexual rompe uma tendência de “enclausuramento” que leva a pessoa a refugiar-se em si mesma. Para a experiência de quem interpreta o ato sexual como agressivo, há uma força transcendente que se impõe, seja o mundo das leis e das proibições, ou das restrições religiosas, que acabam criando um mundo de coação. Por isto funciona um processo contraditório que é o da transgressão das regras ou proibições estabelecidas.
As transgressões são, na verdade, formas de suspensão das proibições, sem, todavia anulá-las. Talvez por isto que na Bíblia, desde os seus primórdios já foram estabelecidos dois mandamentos: não matar e não fornicar, (ou estabelecer relações sexuais fora do casamento).
G. Bataille fez sua análise partindo de uma realidade contraditória de todo ser humano: é incompleto e quer encher-se de completude. Constatamo-nos incompletos, mas obsessivos pela completude, seja com outra pessoa, que identificamos como um “TU”, ou o totalmente outro e absoluto, que denominamos Deus.
Para o referido autor, o erotismo exerce esta mesma força propulsora para a completude. Ainda que não seja pensado na perspectiva moral, o erotismo visa atingir a mesma completude. Tal contradição de incompletude diante do desejo profundo de completude é que ocorre na fusão sexual. Mesmo como relação meramente carnal, envolve uma atitude essencialmente religiosa de transcendência. É por isto que o erotismo sagrado do ocidente é uma busca do amor de Deus.

A morte é a violência máxima porque tira a incompletude do nosso viver e remete para além desta incompletude. Deste modo, quando ocorre uma morte, quer-se saber da pessoa responsável pelo ocorrido e o cadáver é apenas a prova da violência. Assim também, ao se enterrar o corpo, os familiares e amigos querem preservar-se do efeito desta violência, isto é, não querem ser atingidos da mesma forma.
Para Bataille esta é a nossa profunda contradição, pois nos encontramos amplamente controlados por proibições (o que é uma violência), mas sentimos um ímpeto da mesma intensidade para rompê-las. O mesmo tipo de agressão de guerra, de um homicídio ou de outras formas de violência, ocorre também na relação sexual. O sexo, como a morte, provoca horror e fascínio por algo que possa regenerar. Situa-se no quadro acima mencionado de Rudolf Otto, ao descrever o “numinoso” (experiência do sagrado), como tremendum fascinans (que atrai e que ao mesmo tempo apavora).
Segundo Bataille, não é possível fazer a passagem da incompletude para a completude desejada, sem a mediação da violência. Um ato erótico, tal como a morte, representa um ato violento que é movido pelo desejo de completar a incompletude, ainda que propulsionada por um profundo ato de amor.
A violência do erotismo estaria num nível metafísico, porque o erotismo se move para atingir o mais íntimo do ser humano. Portanto, por trás da eroticidade está um processo movido pelo desejo de dissolução da incompletude na pessoa.
Assim, o feminino dissolve o masculino e o masculino dissolve o feminino. A eroticidade visa destruir as estruturas fechadas de quem quer se proteger. Por isso, implica no ato de despir-se. A nudez do fechado da incompletude para buscar a completude. Dali também resulta que o termo “obsceno” implica na violência da raiz da vida amorosa, porque leva os corpos a abrir-se para a completude através de atos que costumamos chamar de obscenos.
Estes atos, na verdade, perturbam os corpos envolvidos, mesmo que se manifeste num mero erotismo de coração ou de afeição dos amantes, porque introduzem medos de desordem nas promessas de felicidade que haviam sido apontadas como sinal de completude e, por esta razão, geram sofrimento. Se a relação sexual realmente propiciasse a completude desejada, ela implicaria em morte, conseqüência evidente de uma permanência prolongada da fusão amorosa.
A dedução lógica destas ponderações de Bataille é a de a que o ato amoroso sempre implica em violência, porque, violando o desejo de fechamento individual pressupõe na abertura à outra pessoa, a expectativa de completude do seu ser. É por esta razão que Bataille viu na ação erótica uma relação com o sacrifício religioso. Num sacrifício não ocorre apenas um despir-se, mas a morte real da vítima. E os assistentes deste procedimento pressupõem captar, através dela, a dimensão do sagrado.
Esta ótica de Bataille pode despertar-nos uma ponderação: se as prescrições proibitivas geram transgressões, como fica o mandamento do não matar e não fornicar? Por outro lado, é a sexualidade humana mesmo uma realidade que sempre vai frustrar porque nunca leva à completude desejada? E, se levasse à completude, levaria necessariamente à morte?
Para nossa capacidade de síntese, é importante considerar a sexualidade não apenas como fonte de fraqueza e de pecado, mas tampouco pode ficar restrita qualquer banal passatempo. A história revelou exageros de tabus e de condenações sobre o sexo. Certamente não significa que, hoje, sem os tabus, se possa fazer tudo quanto é imaginável neste assunto. Como criaturas sexuadas, envolvemos sexualidade em todas as nossas relações. Mesmo vivendo num tempo em que se questionam conceitos sobre identidades sexuais, sabemos que a sexualidade envolve tanto a nossa personalidade, quanto nossas experiências de Deus.
Em nossos dias, está manifesta uma crise entre o exercício da sexualidade e a prática da sexualidade, que, por longo tempo, foi afetada por muitas normas proibitivas. Entretanto, como a sexualidade é uma dimensão básica da vida, já nos damos conta de que a sexualidade é muito mais ampla do que relações genitais. A polêmica se estabelece, sobretudo, entre a normatividade da Igreja Católica sobre o comportamento sexual (como, quando e para que fim) e, por outro lado, uma intensa estimulação de genitalidade, como mercado de consumo e apontado como o melhor caminho do prazer e da dissolução de todos os males.


Evidentemente, ocorre uma defasagem e certo desconforto entre o que a Igreja Católica e o que as Ciências Humanas sustentam sobre a vida sexual. Muitas pessoas de fato herdaram regras morais extremamente rígidas da tradição católica, a tal ponto que, sobre este assunto, tudo é grave.
Ainda que levemos em conta um pouco menos o peso moral da herança histórica, não podemos deixar de observar que muitíssimas relações sexuais humanas são altamente sintomáticas de falta de amor, pois instrumentalizam outras pessoas e as fazem sofrer por meros interesses egoístas. Na perspectiva cristã emerge a noção de que não se pode separar sexo de amor, de ternura e de afeto. Nem sempre a centralidade do sexo na vida está sendo expressão de amor. Há, de fato, uma massiva estimulação sexual e até mesmo de auto-erotismo que banaliza e que coisifica outros seres humanos.

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