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01/05/2012 23:55
O teólogo Urs von Baltazar declarou que a Antropologia Religiosa trata de ponderar sobre a “fala” de Deus, transposta para a linguagem humana. Como seres humanos, que dependem essencialmente de um mundo envolvente, criado pela cultura, não entendemos automaticamente outras linguagens, sem primeiro aprendê-las. Como apenas entendemos signos de linguagem humana, tampouco conseguiríamos assimilar uma linguagem estritamente divina, porque somente e ainda com muita dificuldade,3 entendemos parte da linguagem dos signos do entendimento humano. Deste modo, uma linguagem divina ou de outra natureza, simplesmente não nos diria nada. Por isto, ao pretendermos tratar da fala de Deus, precisamos transpor em linguagem humana como experimentamos e sentimos esta presença e as interpelações de Deus que delas decorrem para a nossa vida.
A Bíblia oferece noções antropológicas muito diversificadas e muito distintas daquelas noções que as ciências modernas vêm apresentando nos últimos anos a respeito de religião, fé e experiência de Deus. Apesar das diferenças, não se pode ignorar que ocorreram grandes avanços para o entendimento destas distintas expressões humanas.
Ainda que pensemos a Bíblia como linguagem humana a respeito de como grupos humanos, ou, pessoas, sentiram e captaram a manifestação de Deus, fica no ar uma questão: é toda a Bíblia que é mensagem de Deus ou são apenas partes dela?
3 Basta lembrar a dificuldade para entender uma língua diferente dentre as inúmeras que existem em nossos dias!
Podemos constatar que poucos textos tratam diretamente sobre aspectos da vida humana (leis, mitos, patriarcas), mas, mesmo os outros, decorrem das formas como pessoas, em diferentes momentos históricos, sentiram interpelações de Deus. Ainda que alguns personagens bíblicos tenham comparado Deus como um chefe de exército capaz de matar, tratava-se de um modo como enquadravam Deus na sua linguagem humana, e, num determinado momento histórico.
Entretanto, se pensamos que a Bíblia é uma mensagem de Deus à condição humana e, se Jesus Cristo é a culminância desta mensagem, então a Bíblia deve ser vista em sua totalidade, mesmo que alguns textos isolados pareçam não apresentar nada significativo da parte de Deus. Para as pessoas envolvidas naquela experiência, todavia, isto representava algo de Deus. Por isto, alguns aspectos apresentam uma relevância especial:
a) - O uso de referências humanas - Um aspecto antropológico muito importante da Bíblia é o seu uso de imagens da condição humana. A Bíblia, por exemplo, fala muito de coração, sem se referir ao órgão propulsor do sangue no organismo, mas como entendimento do interior das pessoas, dos sentimentos, dos desejos, da razão e da decisão. O coração está no interior do corpo como sentimento, como desejo, como razão e como decisão. Ele também é colocado como centro de energia do corpo. Por vezes, o coração ainda equivale a sentimentos da alma.
Para a Antropologia, mais do que a imagem usada, torna-se significativo observar o modo como a Bíblia oferece a imagem com vistas a expressar aspectos invisíveis da vida. Ela exprime no corpo humano o que não é visível.
b) - Os antropomorfismos - A Bíblia também revela uso freqüente de antropomorfismos, isto é, usa imagens antropológicas humanas para falar de Deus. Por exemplo, que Deus “falou”, que Ele é fiel, que é bom, etc. Também usa antropomorfismos morais, no sentido de que Deus é fonte de obrigações morais. O antropomorfismo, em tal caso, transmite um conhecimento moral. Se a conclusão de que Deus cria, fala e age, foi incorporada ao conteúdo bíblico, é porque estas pessoas de fé queriam passar, para a vida de outra pessoas, a noção de que o ser humano também pode apresentar outra qualidade de vida, que pode falar diferente e que pode agir de maneira mais respeitosa e humanitária.
A Antropologia bíblica ajuda a perceber que, ao longo de muitos séculos, diferentes grupos humanos se moveram pela fé num Deus que se relacionava com eles e lhes deixava, contudo, uma constante cobrança para a transformação, além de seguidas interpelações para que estes seres humanos pudessem melhorar a qualidade de sua vida. Por trás destas motivações estava uma noção muito significativa: o centro é Deus e não o ser humano. Os seres humanos são apenas criaturas ou obras de Deus.
c) - O Pecado - A Antropologia Bíblica também deixa muito evidente um traço humano que, constantemente, nos envolve: o doloroso problema do pecado. O livro de Jó, do Primeiro Testamento, reflete muito bem este paradoxo. No capítulo 42, destaca que quanto mais encontra Deus, mais se dá conta do pecado. Ali, a noção de pecado não é a de uma infração de regra, mas pecado é não ter entendido a Deus. Jó fez uma “desantropomorfização” de Deus (distinguiu e separou Deus das características das pessoas humanas), pois constatou que há uma grande diferença entre Deus e o ser humano. Por isso deduziu que os seres humanos não são donos do seu sopro vital...
No século IV da nossa era cristã desenvolveu-se outra noção sobre o pecado e esta teve muitas e profundas repercussões nos quadros da Igreja Católica. Na época começou a desenvolver-se a chamada de doutrina pelagiana (de Pelágio) que desvirtuava a proposta salvadora de Jesus Cristo. Sustentava que uma pessoa poderia salvar-se e redimir-se com suas próprias forças. Nenhuma intervenção de outro mundo seria necessária à salvação. Para justificar tal convicção, estabelecia uma polarização entre Adão e Jesus Cristo. O primeiro, Adão, seria um exemplo negativo de superação, enquanto que Jesus Cristo, teria sido um exemplo positivo de como cada pessoa poderia auto-transcender-se. Os males que se manifestam na vida das pessoas, todavia, seriam apenas contrariedades da natureza e não teriam nada a ver com a situação dos pecados das pessoas, tanto pessoais quanto coletivos.
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Agostinho de Hipona (ou Santo Agostinho) estabeleceu grande polêmica contra o pelagianismo ao sustentar que a salvação somente aconteceria com a graça, dom gratuito de Deus. Por isto, sustentou também que o pecado de Adão foi transmitido a todos os seres, porém, a salvação aconteceu através de Jesus Cristo, pois Ele não foi apenas um bom exemplo, mas foi o salvador de Deus.
Independente desta polêmica e dos seus efeitos na história da Igreja é possível constatar que existe um mal nas pessoas, nas sociedades e em toda a humanidade. O modo como estes seres humanos vivem, com certeza, não preenche adequadamente a noção de que foram feitas à imagem de Deus. Tal constatação requer um caminho ou um processo de remissão ou de saída deste estado de pecado, que aconteceria a partir do batismo... Mesmo que hoje muitas pessoas não pensam e agem como Agostinho de Hipona, não nos escapamos de uma melancólica constatação: mesmo cientes da proposta de remissão apontada por Cristo, e ainda que estejamos encantados pela sua proposta de salvação, agimos de modos que não concorrem para este caminho salvador. Esta misteriosa inclinação que nos leva a fazer as coisas pelo lado avesso tende a alienar da proposta de amor que vem de Deus.
d) - A contingência - Junto com o problema do pecado, está o da contingência, ou seja, o do limite da nossa condição humana. Jó constatou que Deus pode fazer tudo e nada lhe é impossível. Por isso, Jó pode ser interpretado como sinônimo dos sofrimentos nacionais do período do exílio e do pós-exílio, no século V antes de Cristo. Trezentos anos mais tarde, diante de uma invasão imperialista muito cruel, o livro dos Macabeus (2Mc,7,22-23) salienta que uma mãe encoraja os filhos com sua experiência de fé professada: sente-os como indefesos, mas os convida para que se entreguem confiantes à providência divina.
Este quadro de algumas referências do Primeiro Testamento da Bíblia já nos permite contrastar diferenças notáveis da experiência de Deus, feitas a partir do Novo Testamento, segundo a Antropologia Cristã.
A Antropologia Cristã parte da noção de que Deus se deu a conhecer por meio de Cristo, no Espírito Santo. Tal concepção recupera elementos do Primeiro Testamento e destaca conseqüências desta nova leitura da ação de Deus, sintetizada no Segundo Testamento.
Do Primeiro Testamento, recuperou-se a significativa noção de que os seres humanos se constituíam em “imagem de Deus”, porque vinham exercendo o primado ou o controle sobre as outras formas de vida no planeta. Esta perspectiva nos ajuda a entender porque o livro do Gênesis colocou o ser humano no centro do Éden, ou do paraíso.
O Segundo Testamento faz uma releitura desta antiga interpretação e enfatiza que Cristo é o novo Adão. Trata-se de uma orientação escatológica para o sentido da vida e não apenas da capacidade de estar acima dos outros seres que vivem no planeta Terra.
0utra importante noção da Antropologia Cristã é a de que o ser humano é chamado a ser filho de Deus, através de Jesus Cristo. Significa que, Nele, nos tornamos de filiação divina.
Uma terceira e importante noção da Antropologia Cristã é a de que a plenitude do ser humano não se resume apenas a do que ele consegue fazer ou conquistar, mas no poder contar com a graça gratuita e imerecida por parte de Deus.
Uma quarta característica da Antropologia cristã é a da defesa da unidade do ser humano, isto é, não sustenta a dualidade, divisão ou separação de corpo e alma. Como criaturas humanas, somos, ao mesmo tempo, mundanos e transcendentes a este mundo. Podemos relacionar-nos com Deus. Apesar da herança grega, que repassou à cultura ocidental a noção da dualidade em que ocorre a superioridade ou o primado da alma sobre o corpo, a tradição bíblica e cristã se norteou por uma concepção bem distinta: o corpo nunca foi considerado ruim ou inferior.
A grandeza da vida que envolve o corpo humano está, não em liberar a alma para sair do corpo, mas na condição de que o ser humano, na totalidade do seu corpo, está aberto à transcendência. O ser humano não é apenas um sujeito a mais no mundo, mas é pessoa, única e que não encontra outra igual. Como pessoas, somos seres humanos distintos de todos os outros seres que nos cercam. Uma pessoa tem valor e dignidade. Ela tem valor absoluto, porque o tem para Deus. A pessoa não tem liberdade, mas é liberdade, porque tem as condições e as capacidades de auto-determinação. Na liberdade, a pessoa humana pode optar em relação ao que vai fazer consigo mesma. Por isso, liberdade não tem nada a ver com capricho ou com a vontade repentina de fazer qualquer coisa que bate na cabeça, mas resulta de uma condição da nossa responsabilidade humana, pois, nos tornamos mais plenos e mais livres, quando optamos pelo bem. Isto também significa que podemos libertar-nos pelo Espírito, romper amarras de egoísmo e de pecado. A liberdade existe até mesmo em relação a Deus e à sua Palavra, pois Ele não nos obriga e nem nos força a aceitá-la, mas a oferece para a nossa decisão.
Como criatura pessoal e livre, o ser humano está necessariamente aberto ao mundo e aos outros, e, neste exercício, exprime sua transcendência. Ele precisa do mundo que o rodeia para subsistir; tem capacidade de transformar este mundo que o rodeia e ainda é constituído pela potencialidade de abrir-lhe novas possibilidades. Portanto, o trabalho tem um âmbito cósmico, o que leva à conclusão de que uma pessoa humana é co-criadora, com Deus. Por experimentar perpétua insatisfação em relação ao que alcança e ao que deseja, o ser humano tem um sentido para além do mundo. Na capacidade de comunhão com as pessoas, o ser humano encontra condições para lidar consigo mesmo e, e de forma mais satisfatória com as outras pessoas. Enquanto pessoa, no encontro com o outro, o ser humano lida com um valor absoluto. Por isso, o relacionamento humano oferece condições de tanscendência ao que envolve as pessoas.
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